Esses não são todos os versos da minha vida. Alguns foram rasgados, como tinham de ser. Outros foram perdidos. Alguns simplesmente esquecidos, num canto qualquer de armário ou num amor qualquer que eu nem me lembro o nome. Os versos que chegam aqui são sobreviventes. Como eu sou um sobrevivente da vida. E a poesia, uma sobrevivente em mim.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

homofobia

chove. eles vão me pegar. eu corro, corro. mas eu não sei nadar pelas paredes. na esquina do muro eu encontro um buraco e me escondo nele. e vejo: você. mas quem será esse menino que se esconde no muro junto comigo? de cabelo molhado, pernas amarradas pelos braços, você chora. já te pegaram. você se esconde não pra fugir, mas pra chorar em paz. você treme tanto. eu pergunto se posso te abraçar, pra te esquentar do frio. você tem medo de mim. mas olha, eu não sou um deles. eu sou um de nós.

você não tem certeza, mas deixa eu te abraçar. o frio é maior do que o medo. e nós ficamos ali. os dois gelados, mas agora esquentados, um pelo outro. os olhos se acostumam. e eu posso ver o seu rosto. posso ver seus olhos molhados. suas marcas. sua boca. é como se o tempo tivesse parado por um minuto. como se nada, nem chuva, nem marcas, nem eles, como se nada disso existisse, pelo menos naquele momento. naquele breve intervalo. não sei quem deu o primeiro beijo. provavelmente não fui eu, medroso como eu sou. mas o fato é que ali, naquele buraco escuro fugido da chuva e de tudo mais que existe no mundo, nós nos amamos. de corpo e de palavras. eu queria poder viver nesse buraco, nesse canto de mundo onde ninguém nos acha. mas eles sempre acham.

o tempo passa. passos. eles passam na entrada do buraco. dá pra ver as botas deles e as coisas que eles trazem nas mãos. levaram você. levaram. justo agora. antes. antes que eu pudesse dizer tudo o que eu queria dizer. eu quero gritar: eu te amo! mas não consigo. se eu grito eles vão me levar também. então eu me calo. me aperto todo em mim mesmo. me prendo eu mesmo no fundo do buraco. tapo com força a minha própria boca. me amarro braços e pernas. uso as cordas que eles trouxeram. e me faço mudo, e quieto, e só, e invisível. eles me deixam viver assim. e já é muito.

e sem ser visto, eu ando aí pelas cidades. ando nas ruas, entro nos bares, sento na sala de espera. faço todas as coisas normais que as pessoas normais devem fazer. eu trabalho, caso, como, pago as minhas contas, beijo a testa dos meus filhos - mas não me deixam botar eles no colo, sabe como é, eles não confiam. e vou vivendo a minha vida. que vida? vida assim de me apagar em cada traço, de me fazer do jeito que eles querem. não é escolha. é sobrevivência.

mas essa corda aperta demais. e eu já estou cansado. cansado de andar pra lugar nenhum. cansado de andar só porque é pra lá que todo mundo vai. cansado. as dores são tantas. e doidíssimas. às vezes eu deito de noite na minha cama de casal. me viro pra parede vazia. e lembro, ali, no escuro daquele quarto que não é meu, dos seus olhos. do seu corpo gelado que eu abracei um dia. e eu corro. corro pelas ruas de madrugada. procuro pelos becos, mas você não está. talvez não esteja mais em lugar nenhum. a não ser em mim. na minha lembrança funda e calada. na minha memória amassada e interrompida. e ali, nas ruas escuras, nos becos, nos banheiros sujos, que foi tudo o que eles deixaram pra nós, eu me encontro com os outros. e roçamos os nossos corpos, sem olhar os nossos rostos. como quem se toca sozinho, mas acompanhado. nessas noites anônimas eu gasto a minha tensão com desconhecidos. mas não é só de carne que eu tenho fome. eu tenho fome de uma mão delicada, enlaçada na minha. eu tenho fome de um beijo sem língua. eu tenho fome de um ombro, de um peito onde deitar minhas lágrimas. eu tenho fome de tudo mais que há pra além e junto. eu tenho saudade de você. e então eu volto pra casa, aquela casa vazia, de gente e de sentido, me amarro de novo como todo dia, e me deito sem dizer nada. não há o que dizer.

e cada dia a vida continua. dia após dia. trabalho, casa, cama. e de novo. e de novo. e então um dia eu me revolto. não aguento. não consigo caber na minha própria pele. dói demais! essas amarras. dói demais. então eu arrebento! vou pro meio da praça e grito. grito um grito louco, fundo, rasgado, que leva pra fora de mim, que quebra todas as correntes. e então eles param. e olham na minha direção. eles, que há muito tempo já não me enxergavam mais. eles, pra quem eu era não mais do que qualquer um, mais um que seguia o fluxo, que ia no mesmo sentido.

eu tento correr, mas já não adianta. não vão me deixar. então pronto. não corro. eu fico. fico e digo tudo o que eu tenho pra dizer. jogo cada pedaço dessa minha dor na cara desses idiotas. amaldiçôo tudo que pra eles é tão importante. e lá vem eles. de novo. com as cordas, botas e todas as coisas que eles trazem nas mãos. eu sei o que eles vão fazer. sei que eles não podem, não conseguem deixar alguém ali, no meio da praça, dizer todas aquelas coisas. eu sei que eu não tenho muito tempo. eu sei que eles não vão me deixar sair. não dessa vez. eles me arrancam. me batem, me esfaqueam, me atiram, me matam, me espancam. mas não importa. agora não importa mais. porque as cordas já não me prendem mais. as mãos já não me calam. a dor já não me dói. e eu já não lembro, já não sei. só sinto uma sensação indescritível de liberdade. e antes de fechar o olho, eu vejo você, e sinto a sua mão tenra carinhando suavemente o meu rosto. os seus olhos tão lindos. a sua boca. e com uma voz suave, você me olha, sorri e diz: vem. e eu vou.