Esses não são todos os versos da minha vida. Alguns foram rasgados, como tinham de ser. Outros foram perdidos. Alguns simplesmente esquecidos, num canto qualquer de armário ou num amor qualquer que eu nem me lembro o nome. Os versos que chegam aqui são sobreviventes. Como eu sou um sobrevivente da vida. E a poesia, uma sobrevivente em mim.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

minha outra cidade


da minha janela eu vejo outra cidade
que fica do outro lado do mar
às vezes eu penso qual é a minha cidade
se a que eu estou
mas não consigo enxergar
ou se aquela do outro lado da janela

e assim eu sou
quando olho pra você
e vejo os seus olhos dos meus
mas não consigo mais me ver

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

homofobia

chove. eles vão me pegar. eu corro, corro. mas eu não sei nadar pelas paredes. na esquina do muro eu encontro um buraco e me escondo nele. e vejo: você. mas quem será esse menino que se esconde no muro junto comigo? de cabelo molhado, pernas amarradas pelos braços, você chora. já te pegaram. você se esconde não pra fugir, mas pra chorar em paz. você treme tanto. eu pergunto se posso te abraçar, pra te esquentar do frio. você tem medo de mim. mas olha, eu não sou um deles. eu sou um de nós.

você não tem certeza, mas deixa eu te abraçar. o frio é maior do que o medo. e nós ficamos ali. os dois gelados, mas agora esquentados, um pelo outro. os olhos se acostumam. e eu posso ver o seu rosto. posso ver seus olhos molhados. suas marcas. sua boca. é como se o tempo tivesse parado por um minuto. como se nada, nem chuva, nem marcas, nem eles, como se nada disso existisse, pelo menos naquele momento. naquele breve intervalo. não sei quem deu o primeiro beijo. provavelmente não fui eu, medroso como eu sou. mas o fato é que ali, naquele buraco escuro fugido da chuva e de tudo mais que existe no mundo, nós nos amamos. de corpo e de palavras. eu queria poder viver nesse buraco, nesse canto de mundo onde ninguém nos acha. mas eles sempre acham.

o tempo passa. passos. eles passam na entrada do buraco. dá pra ver as botas deles e as coisas que eles trazem nas mãos. levaram você. levaram. justo agora. antes. antes que eu pudesse dizer tudo o que eu queria dizer. eu quero gritar: eu te amo! mas não consigo. se eu grito eles vão me levar também. então eu me calo. me aperto todo em mim mesmo. me prendo eu mesmo no fundo do buraco. tapo com força a minha própria boca. me amarro braços e pernas. uso as cordas que eles trouxeram. e me faço mudo, e quieto, e só, e invisível. eles me deixam viver assim. e já é muito.

e sem ser visto, eu ando aí pelas cidades. ando nas ruas, entro nos bares, sento na sala de espera. faço todas as coisas normais que as pessoas normais devem fazer. eu trabalho, caso, como, pago as minhas contas, beijo a testa dos meus filhos - mas não me deixam botar eles no colo, sabe como é, eles não confiam. e vou vivendo a minha vida. que vida? vida assim de me apagar em cada traço, de me fazer do jeito que eles querem. não é escolha. é sobrevivência.

mas essa corda aperta demais. e eu já estou cansado. cansado de andar pra lugar nenhum. cansado de andar só porque é pra lá que todo mundo vai. cansado. as dores são tantas. e doidíssimas. às vezes eu deito de noite na minha cama de casal. me viro pra parede vazia. e lembro, ali, no escuro daquele quarto que não é meu, dos seus olhos. do seu corpo gelado que eu abracei um dia. e eu corro. corro pelas ruas de madrugada. procuro pelos becos, mas você não está. talvez não esteja mais em lugar nenhum. a não ser em mim. na minha lembrança funda e calada. na minha memória amassada e interrompida. e ali, nas ruas escuras, nos becos, nos banheiros sujos, que foi tudo o que eles deixaram pra nós, eu me encontro com os outros. e roçamos os nossos corpos, sem olhar os nossos rostos. como quem se toca sozinho, mas acompanhado. nessas noites anônimas eu gasto a minha tensão com desconhecidos. mas não é só de carne que eu tenho fome. eu tenho fome de uma mão delicada, enlaçada na minha. eu tenho fome de um beijo sem língua. eu tenho fome de um ombro, de um peito onde deitar minhas lágrimas. eu tenho fome de tudo mais que há pra além e junto. eu tenho saudade de você. e então eu volto pra casa, aquela casa vazia, de gente e de sentido, me amarro de novo como todo dia, e me deito sem dizer nada. não há o que dizer.

e cada dia a vida continua. dia após dia. trabalho, casa, cama. e de novo. e de novo. e então um dia eu me revolto. não aguento. não consigo caber na minha própria pele. dói demais! essas amarras. dói demais. então eu arrebento! vou pro meio da praça e grito. grito um grito louco, fundo, rasgado, que leva pra fora de mim, que quebra todas as correntes. e então eles param. e olham na minha direção. eles, que há muito tempo já não me enxergavam mais. eles, pra quem eu era não mais do que qualquer um, mais um que seguia o fluxo, que ia no mesmo sentido.

eu tento correr, mas já não adianta. não vão me deixar. então pronto. não corro. eu fico. fico e digo tudo o que eu tenho pra dizer. jogo cada pedaço dessa minha dor na cara desses idiotas. amaldiçôo tudo que pra eles é tão importante. e lá vem eles. de novo. com as cordas, botas e todas as coisas que eles trazem nas mãos. eu sei o que eles vão fazer. sei que eles não podem, não conseguem deixar alguém ali, no meio da praça, dizer todas aquelas coisas. eu sei que eu não tenho muito tempo. eu sei que eles não vão me deixar sair. não dessa vez. eles me arrancam. me batem, me esfaqueam, me atiram, me matam, me espancam. mas não importa. agora não importa mais. porque as cordas já não me prendem mais. as mãos já não me calam. a dor já não me dói. e eu já não lembro, já não sei. só sinto uma sensação indescritível de liberdade. e antes de fechar o olho, eu vejo você, e sinto a sua mão tenra carinhando suavemente o meu rosto. os seus olhos tão lindos. a sua boca. e com uma voz suave, você me olha, sorri e diz: vem. e eu vou.

domingo, 8 de janeiro de 2012

meros desconhecidos


foi assim, de imediato. na mesma hora meu olho parou em você. nos seus olhos, seu cabelo, escorregando pelo seu rosto. entre trens e pessoas debaixo da cidade. você era todo curva, todo movimento. seu jeito menina, de parar, de mexer nos cachos, de virar de lado, de olhar quase que mordendo a boca, de andar. essa voz assim tão delicada. eu simplesmente não consegui parar de olhar pra você. olhar mesmo assim como quem come, como quem invade, como quem despe. eu toquei cada parte do seu corpo com esse meu olhar atrevido. então você se mexe, me olha de lado, e ajeita a camisa, como quem descobre uma parte do corpo de fora, embora você estivesse irritantemente todo vestido. lindo, mas vestido. impressionante como você era todo carne e delicadeza, ao mesmo tempo. e eu não sei se queria te comer, ou me apaixonar por você. talvez os dois. quem sabe até ao mesmo tempo. 

claro que eu não dispensaria você no meu almoço, com certeza, mas sei lá. acho que primeiro eu ia querer levar você pra passear, ver um filme no cinema, comer uma pizza, falar abobrinha, e se o tempo desse e o vinho subisse, quem sabe até falar de coisa séria, da vida, das dores, alegrias, passados. queria antes de tudo provar um pedacinho de beijo. só um pedacinho. que não matasse a fome, mas deixasse um gostinho do resto. uma vontade de experimentar de novo. e de novo. até que nós invariavelmente acabaríamos nus, um do lado do outro, emaranhados numa cama, num apartamento qualquer dessa cidade tão grande. assim, anônimos. sem nomes, sem obrigações, e por isso mesmo sem mentiras. só dá pra ser absolutamente verdadeiro com desconhecidos. e então, com a certeza de que nunca mais nos veríamos, nós nos entregaríamos completamente, e contaríamos um ao outro os nossos maiores segredos, nossos maiores medos, nossas verdades mais sinceras e nossos sonhos mais inviáveis.

e quem sabe, assim, por um acaso, eu não jogasse fora o telefone seu que eu anotei num canto qualquer de papel, como quem anota um bilhete meio sem importância, e guarda assim com um desleixo quase querendo perder. e aquele bilhete rodaria minha mochila, meus cantos de gaveta, meus bolsos de calça, até que num dia frio, tipo aqueles dias nublados, quando a gente fica mais sozinho, eu finalmente encontraria, sem querer, o papel que eu nunca me deixei perder. te ligaria, e por um milagre, você atenderia. tantas possibilidades, não? você podia estar estudando, ou assistindo um filme, podia ter colocado no mudo, no silencioso, ele podia estar vibrando esquecido num canto do quarto, ou você podia simplesmente não querer atender um número desconhecido, ou mais ainda, não querer atender aquele número mais que conhecido. mas ao invés disso, você pegaria o telefone e simplesmente diria: oi. e no momento que eu ouvisse aquela tua voz de menina do outro lado, um sorriso enorme partiria meu rosto de lado a lado, um conforto quentinho me abraçaria o corpo todo. e eu te chamaria pra sair. inventaria qualquer desculpa pra que tudo parecesse um mero acaso, uma puramente incidental coincidência. e assim, como quem até quer, mas nem faz questão, eu me arrumaria horas na frente do espelho, colocaria a minha roupa mais bonita, me faria todo o mais interessante possível, até o limite que a minha realidade de menino simpático permitisse.

e iria te encontrar. você, do mesmo jeito, iria assim, largado, de qualquer jeito, de um jeito e de uma beleza estonteante. e nós nos olharíamos como simples caras, que se esbarram novamente depois de uma boa noite. mas os nossos olhos nos enganariam. e o que era pra ser frívolo, seria verdadeiro, o que era pra ser mero, seria intenso, o que era pra ser só mais um, seria único. e enquanto o filme passasse e ninguém mais olhasse, eu encostaria de novo meu braço no seu, e pegaria sua mão na minha, e entrelaçaria todos os nossos dedos, e viraria delicadamente pro seu lado. e enquanto nossos olhares se encontrassem e teimassem em ser fundos, e fortes, e intensos, eu lhe puxaria pra mais perto, e com a outra mão já enlaçada no seu cabelo, eu delicadamente encostaria os meus lábios nos teus, primeiro a parte de baixo, depois a de cima, como quem bebe mesmo a outra boca. e esse seria não mais um, mas o nosso primeiro beijo. o beijo que nós lembraríamos pra sempre. o beijo que marcaria a nossa data. e que nós comemoraríamos, a cada mês, depois a cada ano, no dia inesquecível do início do nosso grande amor.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

eu e meu menino criança

o que eu faço com esse menino? que me deita no colo toda noite, que brinca com seus sonhos infantis na minha frente, que me fala de todas  s suas esperanças. menino diante da estrada que é ele, cheio de vontade e correria, que eu, nesses meus dias de meio de vida, meio cansado, tento acompanhar.

eu lhe digo que eu sou um homem e ele um menino. e que meninos e homens podem até se encontrar, podem até se encantar, mas andar juntos já é muito complicado. ele me diz que não é criança. e se revolta e vira a cara. e bate os pés como quem tem oito anos. me xinga, amaldiçoa e vai embora. e depois volta. volta se enroscando no meu colo, se ajuntando no meu peito, como um menino arrependido. e me pede desculpa pelos meus erros. e diz que já esqueceu tudo. eu olho pra esses olhos castanhos e sei tudo o que ele sente. pudera ele olhar os meus e me ver. meninos não conseguem enxergar por dentro dos homens. ainda bem. porque eu não sou tão bonito por dentro quanto - imaginem - ele me vê bonito por fora. há segredos demais, histórias tristes demais, mágoas abertas e feridas muito feias de serem vistas. é  reciso estômago. é preciso vida.

dessa vez eu sou o mais velho. eu sou o que sabe. saber o que? só sei o que eu aprendi nesses meus poucos anos de vida. muita vida, é certo. mas ainda poucos anos. e quem sabe lá o que esses dias me reservam. quem sou eu pra dizer quem é o menino certo. então eu não penso. e vou. vou de mãos dadas com ele pela rua, por cada caminho da sua aventura. visito com ele todos os lugares que eu já conheço. mas para ele tudo é novo e incrível. ele aproveita cada minuto. faz de cada coisa como se fosse um mundo inteiro novo. e ri. e eu me alimento do seu sorriso, da sua alegria, como um palhaço que ganha o dia com a felicidade do outro. mas não sei ao certo se esse riso me acompanha quando eu vou pra cama e me deito sozinho, nas poucas noites que eu passo longe desse menino.

eu não quero magoar mais essa criança. não quero lhe ferir a ponto de imacular a sua esperança. não quero lhe iludir. não quero me iludir. ao mesmo tempo eu não sei, não sei de tudo, não posso querer adivinhar a vida inteira, como se trinta anos bastassem para saber a verdade do mundo. e eu fico aqui. do lado da minha criança. lhe ponho na cama, lhe ajeito o cobertor, e deito ao seu lado. é lindo ver esse meu menino dormir, com seus olhos tranquilos, seu rosto quase sem marcas, de um descanso que só nos primeiros anos da vida. e fico imaginando os seus sonhos. e sei que eu estou em boa parte deles. então eu durmo. e descubro, surpreso, que ele já começa a estar em alguns dos meus.

domingo, 30 de janeiro de 2011

o menino dos olhos



era tarde de sol, e eu, muleque de escola, tinha voltado da aula pra casa de um amigo. lembro dos uniformes de escola pública, das mochilas carregadas, de nós dois nos empurrando como os muleques fazem. fomos pra casa dele, e na casa, pro quarto. na casa não tinha ninguém, só nós e aquele silêncio da tarde longe do centro, aquele silêncio quente, de janelas fechadas, com o sol passando pelas frestas, aquele silêncio de pais trabalhando longe e que só vão chegar bem mais tarde, aquele silêncio dos azulejos da cozinha, do bolo em cima da geladeira, do barulho que faz quando a gente abre uma porta, silêncio como se o mundo todo estivesse trancado do lado de fora, e a gente ali, longe de todos os olhos, num tempo parado. ele me puxou pro quarto da mãe e começou a mostrar as coisas dela, a mesa, a penteadeira, o espelho. eu, muleque bem besta, disse que ele parecia uma garotinha. ele, tão besta quanto eu, me tacou uns tapas e a gente começou a brigar, não briga séria, mas essas brigas de muleque, que brincam que nem cachorro. e nessa briga de criança, a gente foi cair na cama da mãe dele. rolando na cama, os tapas começaram a ficar mais leves, os empurrões mais brandos, e o que antes era força foi tornando em delicadeza. a mão que antes batia, agora começava a tocar, e de tocar, acariciar. e com os corpos misturados pela briga, que agora já não era mais briga, nem brincadeira, eu lhe olhei nos olhos. maldita hora, maldita idéia. ele, invés de fazer como um muleque, e desviar os olhos e fugir dali, olhou de volta, mais fundo do que eu tinha olhado. lembro até hoje de cada pedaço daqueles olhos, dos cílios, das sombrancelhas, do final do nariz, do cabelo caindo no rosto, da cor, de cada cor que ele tinha no olho, e daquelas duas coisas, tão fortes, tão fundas, que olhavam pra mim. aquele menino olhava pra mim entrando no meu olhar, e com os seus olhos, arrombava a minha casa, revirando todos os segredos que eu guardava ali dentro. eu tentei sair, mas ele não deixou, não com força. trouxe sua mão até o meu rosto, passou as costas dos seus dedos na minha pele. eu mal acreditava naquele carinho, mas deixei. nossos olhos pregados feito nó, eu podia saber o que ele queria, e ele, tudo o que eu sonhava. nesse devaneio de criança, nessa brincadeira de menino, aquele garoto foi chegando seu rosto mais perto do meu, sem perder meu olhar do seu, e numa hora sem par, num segundo que dura mais do que a própria vida, porque é esse segundo que faz o sentido mesmo da vida, ele tocou sua boca na minha. nesse instante, perdido em tudo o que eu podia ter de certo, eu senti aquele cheiro, perfume de mãe, perfume de mulher, derrubado na cama por dois muleques mal criados, que agora, em vez de brigados, estavam entrelaçados. não preciso dizer que o beijo durou pouco menos de um segundo, porque esse menino aqui, sempre frouxo e tão confuso, pulou da cama num salto, como quem pula daquilo que mais quer, como quem foge do lugar onde sempre quis estar. daí se apaga a memória, que também não há mais o que lembrar. tudo ficou esquecido, tudo ficou calado, guardado no peito mudo. aquele segundo ficou marcado no relógio dessa vida, como que um minuto atrasado, arrastado, cravado, que até hoje não deixou o ponteiro andar. e daquele segundo, sucederam muitos outros. mas os outros passaram, aquele não.

domingo, 7 de novembro de 2010

nesses dias nublados

nesses dias nublados, nessas ruas pequenas, em que quase não passam carros, cheias de árvores que sobem até o topo da vista e se juntam lá em cima, formando um céu verde, o céu do meu sonho, nessas ruas e nesses dias, quando um friozinho gostoso sopra na cidade, quando as nuvens são cheias de cinza e azul, quando tudo parece molhado, mesmo que não chova, quando a chuva não é uma chuva pesada, mas aquela chuvinha fininha, que bate na pele da gente, e gela, nesses dias em que as janelas dos ônibus ficam fechadas, e a gente vê a cidade através das gotas, e fica soprando a janela pra poder escrever coisas bobas, como eu te amo... nesses dias a gente parece mais sozinho, e todo mundo parece mais juntinho, como se o mundo tivesse sumido, e todo mundo tivesse dentro de casa, como se toda a família estivesse junta, as crianças pulando nas camas, alguém fazendo a comida, alguém vendo televisão, e todo mundo conversando, falando, cantando, rindo, como se o tempo não passasse um segundo, como se fosse domingo, ou nem sei, como se não fosse nenhum dia, como se nada importasse, como se fosse perto do natal, e alguém chega do trabalho, todo ensopado, e as crianças pulam no colo, e todo mundo parece feliz..


nesses dias eu passo por essas ruas, e vou olhando as janelas dos prédios, as varandas, os portões antigos das casas, e imaginando, que atrás daquela janela, deitado numa cama quentinha, com medo do frio, está, enroladinho num cobertor, o meu amor. esse amor meu que eu não conheço, a não ser pelo sonho, mas que eu sei que existe, nem que exista só em mim, mas existe. esse amor que eu procuro todo dia, e toda a vida. esse amor pra quem eu escrevo essas cartas, que eu beijo, que me deito, mas que eu ainda não conheço. e imagino que ele está lá, enroladinho no cobertor, e eu aqui, debaixo da janela. e então eu entro em casa, e grito, já cheguei, meu amor, e ele vem correndo, com o cobertor no ombro, e pula em cima de mim, e me abraça com aqueles braços de menino, e eu posso sentir o corpo quente dele esquentando o meu corpo molhado. ele me beija e me diz que estava morrendo de saudade, me faz tomar um banho, esquenta o chocolate, e a gente deita na cama. o frio passa por aquela frestinha na janela, que balança a cortina de leve e deixa os nossos corpos todo arrepiados. a gente deita na cama, nos enrolamos os dois naquele cobertor, de braços e pernas misturados, de peitos se encostando, olhando uma tv que não diz nada, porque os nossos olhos só olham pra nós mesmos, então ele me diz que me ama, eu lhe digo que lhe amo, e assim, já certos de nossos amores, e da verdade de que nós existimos, nós dois dormimos, como dormimos agora, mesmo que acordados, sonhando um com o outro, como quando serão os dias quando a gente se encontrar, como vai ser bom, nesses dias nublados, nessas ruas pequenas, ter um ao outro, pra abraçar, pra beijar, pra dizer e ouvir que ama, pra deitar enroladinho no cobertor, pra sonhar, mas sonhar junto.