Esses não são todos os versos da minha vida. Alguns foram rasgados, como tinham de ser. Outros foram perdidos. Alguns simplesmente esquecidos, num canto qualquer de armário ou num amor qualquer que eu nem me lembro o nome. Os versos que chegam aqui são sobreviventes. Como eu sou um sobrevivente da vida. E a poesia, uma sobrevivente em mim.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

eu e meu menino criança

o que eu faço com esse menino? que me deita no colo toda noite, que brinca com seus sonhos infantis na minha frente, que me fala de todas  s suas esperanças. menino diante da estrada que é ele, cheio de vontade e correria, que eu, nesses meus dias de meio de vida, meio cansado, tento acompanhar.

eu lhe digo que eu sou um homem e ele um menino. e que meninos e homens podem até se encontrar, podem até se encantar, mas andar juntos já é muito complicado. ele me diz que não é criança. e se revolta e vira a cara. e bate os pés como quem tem oito anos. me xinga, amaldiçoa e vai embora. e depois volta. volta se enroscando no meu colo, se ajuntando no meu peito, como um menino arrependido. e me pede desculpa pelos meus erros. e diz que já esqueceu tudo. eu olho pra esses olhos castanhos e sei tudo o que ele sente. pudera ele olhar os meus e me ver. meninos não conseguem enxergar por dentro dos homens. ainda bem. porque eu não sou tão bonito por dentro quanto - imaginem - ele me vê bonito por fora. há segredos demais, histórias tristes demais, mágoas abertas e feridas muito feias de serem vistas. é  reciso estômago. é preciso vida.

dessa vez eu sou o mais velho. eu sou o que sabe. saber o que? só sei o que eu aprendi nesses meus poucos anos de vida. muita vida, é certo. mas ainda poucos anos. e quem sabe lá o que esses dias me reservam. quem sou eu pra dizer quem é o menino certo. então eu não penso. e vou. vou de mãos dadas com ele pela rua, por cada caminho da sua aventura. visito com ele todos os lugares que eu já conheço. mas para ele tudo é novo e incrível. ele aproveita cada minuto. faz de cada coisa como se fosse um mundo inteiro novo. e ri. e eu me alimento do seu sorriso, da sua alegria, como um palhaço que ganha o dia com a felicidade do outro. mas não sei ao certo se esse riso me acompanha quando eu vou pra cama e me deito sozinho, nas poucas noites que eu passo longe desse menino.

eu não quero magoar mais essa criança. não quero lhe ferir a ponto de imacular a sua esperança. não quero lhe iludir. não quero me iludir. ao mesmo tempo eu não sei, não sei de tudo, não posso querer adivinhar a vida inteira, como se trinta anos bastassem para saber a verdade do mundo. e eu fico aqui. do lado da minha criança. lhe ponho na cama, lhe ajeito o cobertor, e deito ao seu lado. é lindo ver esse meu menino dormir, com seus olhos tranquilos, seu rosto quase sem marcas, de um descanso que só nos primeiros anos da vida. e fico imaginando os seus sonhos. e sei que eu estou em boa parte deles. então eu durmo. e descubro, surpreso, que ele já começa a estar em alguns dos meus.

domingo, 30 de janeiro de 2011

o menino dos olhos



era tarde de sol, e eu, muleque de escola, tinha voltado da aula pra casa de um amigo. lembro dos uniformes de escola pública, das mochilas carregadas, de nós dois nos empurrando como os muleques fazem. fomos pra casa dele, e na casa, pro quarto. na casa não tinha ninguém, só nós e aquele silêncio da tarde longe do centro, aquele silêncio quente, de janelas fechadas, com o sol passando pelas frestas, aquele silêncio de pais trabalhando longe e que só vão chegar bem mais tarde, aquele silêncio dos azulejos da cozinha, do bolo em cima da geladeira, do barulho que faz quando a gente abre uma porta, silêncio como se o mundo todo estivesse trancado do lado de fora, e a gente ali, longe de todos os olhos, num tempo parado. ele me puxou pro quarto da mãe e começou a mostrar as coisas dela, a mesa, a penteadeira, o espelho. eu, muleque bem besta, disse que ele parecia uma garotinha. ele, tão besta quanto eu, me tacou uns tapas e a gente começou a brigar, não briga séria, mas essas brigas de muleque, que brincam que nem cachorro. e nessa briga de criança, a gente foi cair na cama da mãe dele. rolando na cama, os tapas começaram a ficar mais leves, os empurrões mais brandos, e o que antes era força foi tornando em delicadeza. a mão que antes batia, agora começava a tocar, e de tocar, acariciar. e com os corpos misturados pela briga, que agora já não era mais briga, nem brincadeira, eu lhe olhei nos olhos. maldita hora, maldita idéia. ele, invés de fazer como um muleque, e desviar os olhos e fugir dali, olhou de volta, mais fundo do que eu tinha olhado. lembro até hoje de cada pedaço daqueles olhos, dos cílios, das sombrancelhas, do final do nariz, do cabelo caindo no rosto, da cor, de cada cor que ele tinha no olho, e daquelas duas coisas, tão fortes, tão fundas, que olhavam pra mim. aquele menino olhava pra mim entrando no meu olhar, e com os seus olhos, arrombava a minha casa, revirando todos os segredos que eu guardava ali dentro. eu tentei sair, mas ele não deixou, não com força. trouxe sua mão até o meu rosto, passou as costas dos seus dedos na minha pele. eu mal acreditava naquele carinho, mas deixei. nossos olhos pregados feito nó, eu podia saber o que ele queria, e ele, tudo o que eu sonhava. nesse devaneio de criança, nessa brincadeira de menino, aquele garoto foi chegando seu rosto mais perto do meu, sem perder meu olhar do seu, e numa hora sem par, num segundo que dura mais do que a própria vida, porque é esse segundo que faz o sentido mesmo da vida, ele tocou sua boca na minha. nesse instante, perdido em tudo o que eu podia ter de certo, eu senti aquele cheiro, perfume de mãe, perfume de mulher, derrubado na cama por dois muleques mal criados, que agora, em vez de brigados, estavam entrelaçados. não preciso dizer que o beijo durou pouco menos de um segundo, porque esse menino aqui, sempre frouxo e tão confuso, pulou da cama num salto, como quem pula daquilo que mais quer, como quem foge do lugar onde sempre quis estar. daí se apaga a memória, que também não há mais o que lembrar. tudo ficou esquecido, tudo ficou calado, guardado no peito mudo. aquele segundo ficou marcado no relógio dessa vida, como que um minuto atrasado, arrastado, cravado, que até hoje não deixou o ponteiro andar. e daquele segundo, sucederam muitos outros. mas os outros passaram, aquele não.