Esses não são todos os versos da minha vida. Alguns foram rasgados, como tinham de ser. Outros foram perdidos. Alguns simplesmente esquecidos, num canto qualquer de armário ou num amor qualquer que eu nem me lembro o nome. Os versos que chegam aqui são sobreviventes. Como eu sou um sobrevivente da vida. E a poesia, uma sobrevivente em mim.

domingo, 30 de janeiro de 2011

o menino dos olhos



era tarde de sol, e eu, muleque de escola, tinha voltado da aula pra casa de um amigo. lembro dos uniformes de escola pública, das mochilas carregadas, de nós dois nos empurrando como os muleques fazem. fomos pra casa dele, e na casa, pro quarto. na casa não tinha ninguém, só nós e aquele silêncio da tarde longe do centro, aquele silêncio quente, de janelas fechadas, com o sol passando pelas frestas, aquele silêncio de pais trabalhando longe e que só vão chegar bem mais tarde, aquele silêncio dos azulejos da cozinha, do bolo em cima da geladeira, do barulho que faz quando a gente abre uma porta, silêncio como se o mundo todo estivesse trancado do lado de fora, e a gente ali, longe de todos os olhos, num tempo parado. ele me puxou pro quarto da mãe e começou a mostrar as coisas dela, a mesa, a penteadeira, o espelho. eu, muleque bem besta, disse que ele parecia uma garotinha. ele, tão besta quanto eu, me tacou uns tapas e a gente começou a brigar, não briga séria, mas essas brigas de muleque, que brincam que nem cachorro. e nessa briga de criança, a gente foi cair na cama da mãe dele. rolando na cama, os tapas começaram a ficar mais leves, os empurrões mais brandos, e o que antes era força foi tornando em delicadeza. a mão que antes batia, agora começava a tocar, e de tocar, acariciar. e com os corpos misturados pela briga, que agora já não era mais briga, nem brincadeira, eu lhe olhei nos olhos. maldita hora, maldita idéia. ele, invés de fazer como um muleque, e desviar os olhos e fugir dali, olhou de volta, mais fundo do que eu tinha olhado. lembro até hoje de cada pedaço daqueles olhos, dos cílios, das sombrancelhas, do final do nariz, do cabelo caindo no rosto, da cor, de cada cor que ele tinha no olho, e daquelas duas coisas, tão fortes, tão fundas, que olhavam pra mim. aquele menino olhava pra mim entrando no meu olhar, e com os seus olhos, arrombava a minha casa, revirando todos os segredos que eu guardava ali dentro. eu tentei sair, mas ele não deixou, não com força. trouxe sua mão até o meu rosto, passou as costas dos seus dedos na minha pele. eu mal acreditava naquele carinho, mas deixei. nossos olhos pregados feito nó, eu podia saber o que ele queria, e ele, tudo o que eu sonhava. nesse devaneio de criança, nessa brincadeira de menino, aquele garoto foi chegando seu rosto mais perto do meu, sem perder meu olhar do seu, e numa hora sem par, num segundo que dura mais do que a própria vida, porque é esse segundo que faz o sentido mesmo da vida, ele tocou sua boca na minha. nesse instante, perdido em tudo o que eu podia ter de certo, eu senti aquele cheiro, perfume de mãe, perfume de mulher, derrubado na cama por dois muleques mal criados, que agora, em vez de brigados, estavam entrelaçados. não preciso dizer que o beijo durou pouco menos de um segundo, porque esse menino aqui, sempre frouxo e tão confuso, pulou da cama num salto, como quem pula daquilo que mais quer, como quem foge do lugar onde sempre quis estar. daí se apaga a memória, que também não há mais o que lembrar. tudo ficou esquecido, tudo ficou calado, guardado no peito mudo. aquele segundo ficou marcado no relógio dessa vida, como que um minuto atrasado, arrastado, cravado, que até hoje não deixou o ponteiro andar. e daquele segundo, sucederam muitos outros. mas os outros passaram, aquele não.

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